domingo, 7 de fevereiro de 2021

Fotografias e narrativas construindo visibilidades

 









    

    Ao olhar uma imagem, imediatamente um cenário narrativo se monta diante do meu olhar. Penso: Como foi esse momento para estas pessoas? o que conversavam? quem as fotografou? Talvez por isto, não consigo pensar as fotografias sem as narrativas que as acompanham. Por que foram feitas, quem as fez, quem as guardou, quem ainda delas se lembra e narra?

    Há cinco anos temos trabalhando com o projeto de extensão: "Fotobiografias: uma Fortaleza (PREX-UFC) que se encontra em acervos fotográficos pessoais" e até hoje me surpreende a capacidade das imagens em me contar algo que ainda não perguntei a elas. Imagens já vistas, imagens escaneadas, impressas, copiadas, várias vezes, para exposições e eventos científicos e, mesmo assim, alguma coisa ainda não expressada surpreende o olhar e remonta as narrativas da cidade observada. 

Nesses dias, ao lermos o artigo de Daniela Moura, "Construindo visibilidades: a fotografia entre o documento e a expressão" (2019), observamos de imediato o uso do verbo construir no gerúndio, dando uma ideia de continuidade da ação, ou seja, ao nos referirmos às imagens, e porque não dizer, também às narrativas, o nosso olhar segue em continuidade na construção de visibilidades. A foto (grafia), como escrita de luz ou escrita com a luz não se restringe apenas a representar algo, mas com um movimento circular, ela retroalimenta visibilidades ao propiciar giros em nossas perspectivas diante da realidade. 

    A fotografia pode captar mais do que havia como campo de possibilidades na sua execução? Como narrar uma história visualmente? Lembro aqui do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni (1966), inspirado no conto Las Babas del Diabo do escritor argentino Julio Cortázar. No filme, um fotógrafo de moda captura, no processo de revelação das suas imagens, cenas não esperadas, possivelmente de um crime. Diante disso, a trama se desenvolverá. Como narrar uma história? Como construir visibilidades com escrita fotográfica? De imediato, talvez, compreender que há mediações neste processo, contudo também imprevisibilidades que podem escapar ao que maneja a lente, mas não escaparão aos olhares. 

    Moura (2019) recorre ao trabalho de André Rouillé, A Fotografia: entre documento e arte contemporânea (publicado originalmente na França, em 2005), para pensar nas reflexões sobre a fotografia entre documento e a expressão de arte. Por surgir na sociedade industrial, ela é tomada como registro, ganhando um lugar de documento e porque não dizer ocupa lugar como parte de um regime de verdade científico. Constituída como prática no contexto urbano fará parte dos processos de controle social, de subalternização dos corpos e higienização social. 

    Como esclarece, Moura (2019, p. 66), a partir de sua leitura de Rouillé:

"Intrínseca aos fenômenos de urbanização e expansionismo, em seu início a fotografia tem a cidade como seu principal cenário, e quando não, muitas vezes parte-se dela para o controle, conquista ou domínio de outros territórios. Entre as imagens de monumentos e grandes construções, entretanto, os transeuntes, a vida periférica das ruas ou do mundo do trabalho estão ausentes." 

    O importante movimento que Moura aponta em seu texto, e aqui nos interessa é observar que a fotografia é muito mais do que esse traço linear diante da realidade. Há circularidade na sua captura do real e no que ela reproduz como visível. A fotografia nos faz ver, produz seus meios e formas de ver. São essas mediações que interferem no processo de fabricação do mundo que ela faz acontecer diante dos nossos olhos. Essas visibilidades não não extraídas, contudo diretamente das coisas, mas são produzidas indiretamente trabalhando e lapidando a forma, a imagem e as possibilidades dessas escrita que é a fotografia. 

    O cerne do artigo de Daniela Moura é aliar essas reflexões teóricas à uma leitura do trabalho fotográfico Açude Sonâmbulo (2017) de Mariana David, realizado no povoado do Corró, na Bahia com mulheres. Em suas palavras, esse trabalho nos faz sair de uma forma de pensamento, que observa a fotografia e a realidade como algo direto e linear e nos leva a um movimento "possível e circular, que se retro-alimenta na construção de visibilidades." (MOURA, 2019, p. 65).

    O trabalho fotográfico alinhava os conceitos gênero, território e memória para falar da experiência de mulheres, em todo de seus mitos e referências, neste povoado no Norte do Estado da Bahia. São retratos que apresentam mais estados do que acontecimentos. Não há uma preocupação da artista com a ação, propriamente dita dessas mulheres em seus cenários cotidianos e nem mesmo a identificação destes espaços. A grafia segue uma dimensão fantasiosa, lendo essas mulheres mais em uma dimensão ficcional do que presas a uma realidade patriarcal, subordinadas ao desejo do outro. O próprio Sertão é lido, não de uma maneira convencional, em suas paisagens duras e áridas. As imagens cinzas, quase desaparecendo, integram rostos e objetos, lendo o território mais por sua paisagem humana do que por suas cartografias geográficas ou físicas. A escuta de Mariana David é sensível ao que essas mulheres são e lembram, elas não são fixadas aos objetos ao seu redor, eles, a saber: o mosquiteiro, panelas, peneiras, cestos, varal, galhos, penas, tecidos e flores as adornam de maneira mítica, elas os tocam ou olham e definem seus lugares nessa composição narrativa.

    O açude faz parte apenas da memória das mulheres. "O açude encontra-se hoje salgado. Ele não serve para nada dentro de um território onde a água é tudo. Ele só serve às lembranças, como uma imagem, como uma imagem do passado que nos ajuda a entender o futuro." (MOURA, 2019, p. 70). 

    Em 1992, o escritor Mia Couto escreveu o livro intitulado Terra Sonâmbula, ali através de um romance ele lê o seu país, Moçambique, e as consequências da guerra civil, mas também de uma guerra de subjetividades, diante da qual ainda não é possível dormir tranquilamente. Lembro que em 2018, durante o mês de setembro em Maputo, a noite percebi que as luzes das casas ao redor do hotel onde eu estava não se apagavam. Entendi a noção de terra sonâmbula,  um estado ainda entre estar acordado e um estado de vigília, que não permite totalmente o descanso, pois há algo ainda sendo lapidado no mais profundo de seus alicerces. 

    Quais os lugares das pessoas e das paisagens na escrita fotográfica? Lembro aqui de outro sensível trabalho de escuta de mulheres, que é o documentário de Eliza Capai: No devagar depressa dos tempos, de 2015, no qual ela mostra a diferença na vida das mulheres do sertão, do Piauí, na cidade de Guaribas, com a implantação da política pública do Bolsa Família. Mulheres que se sobrepõem ao lugar e a dureza das relações que carregam em si. 

    Mariana David recupera um açude sonâmbulo para falar de experiências femininas no Sertão. As mulheres são inseridas em uma paisagem ficcional, construída por suas memórias e imaginação. A artista une as suas vivências ao mítico, transporta essas mulheres com galhos, flores e capas para visibilidades que só elas e Mariana compartilharam nas horas de conversas tiveram. Diante de águas salobras, Mariana David recupera nas memórias dos corpos e nos olhares das mulheres um lugar que não está morto, apenas aparentemente sonâmbulo. 

Referências

CORTAZÁR, Julio. As babas do diabo. In: As Armas Secretas. - Livro vira-vira. - Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. 

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. -São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DAVID, Mariana. Açude Sonâmbulo. São Paulo, Vibrant, 2018.

MOURA, Daniela Fonseca. Construindo visibilidades: a fotografia entre o documento e a expressão. In: Conversando com a imagem [recurso eletrônico] / organização Simonetta Persichetti e Deysi Cioccari. – 1.ed. – São Paulo: Cásper Líbero, 2019.

SILVA, Cristina Maria da. Caligrafias da existência: Narrativas de Moçambique em Mia Couto. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 23, n. 47, p. 87-101, 1º quadrimestre de 2019. 

Disponível em:http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/19363

Blow-Up. Depois daquele beijo. Michelangelo Antonioni. 1966. (111m). 

No Devagar Depressa dos Tempos. Eliza Capai. SP, 2015 (25 min). Documentário.

https://www.youtube.com/watch?v=E7LW3MSkMdg


*Cristina Maria da Silva.

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