terça-feira, 23 de março de 2021

"Diante da dor dos outros" de Susan Sontag – imagens, distâncias, feridas explícitas

 

"O Terror da Guerra (The Terror of War)" de Nick Ut, 1972, Associated Press.

Temos, de modo bastante escalante, coexistido sem pausas com a determinação das imagens. Por meio ora publicitários ora como modo de compartilhamento de si, desde a invenção da câmera fotográfica em todo seu aparato complexo primeiro, até as câmeras instantâneas e as câmeras sempre acopladas em nossos telefones celulares, a modelação do olhar pela imagem fotográfica impera. Vemos uma bela paisagem, imaginamos de pronto uma fotografia, uma experiência em miniatura que em seu modo próprio transforma a realidade. Mas de que modo a existência dessas fotos e o nosso olhar perante elas reapercebe nossa realidade?

Susan Sontag, escritora estadunidense que estendeu sua influência nos campos da filosofia, das artes, do cinema, da política, foi uma figura intelectual marcante no fim do século passado. Com suas obras em geral concisas, escritas como ensaios, Sontag discorreu impassivelmente sobre assuntos de diversos valores sociais – desde a estética de ornamentos “brega” e “de baixa qualidade” sob a sensibilidade “Camp”, até sobre as consequências na percepção frente a documentação de conflitos humanos, em meio suas feridas e dores. Em sua segunda publicação movida por perguntas sobre os fluxos intencionais ou não das imagens fotográficas após “Sobre a Fotografia” de 1977, Susan Sontag delimita no livro publicado em 2003, “Diante da dor dos outros”, o corpo das imagens que relatam a dor do homem, em especial as imagens de guerra, texto este com o qual dialogaremos aqui.

Diante da imagem, construir uma moral, uma realidade ética: tentar ver como os outros vêem, não de maneira relativista, mas direcionada: qual o sentido da dor, das feridas que os outros “capturados” pelas imagens carregam? O que motiva, cria os sentimentos? Sontag parte dessas perguntas, das quais o contexto histórico embutido também se deve fazer relacionar nessa pretensa leitura empática onde somos convocados para olhar essas imagens documentais retratando o sofrimento alheio – como uma atividade, responderíamos se sentimos as mesmas reações, emoções nessa relação feita do olhar.

O horror vívido das imagens de guerra nos afetaria como consequência direta para a rejeição da mesma? Ao sermos implicados na situação retratada de sofrimento humano ao vê-la por meio da fotografia, não estamos diretamente implicados em laços de solidariedade? Não exatamente, segundo Sontag, pois o que situa o sentido da imagem não é a própria imagem, mas as palavras que criam sua silhueta, seus contextos históricos e políticos na eternidade do olhar no momento presente de quem a experiencia. Dessa maneira, a documentação desses conflitos de guerra não ressoariam assim tão objetivamente como o pretendido, mas sim implicaria a falsificação, a “limpeza” da relação de vivência desses momentos repartidos. Em Sontag, por meio do consumo das mídias embebidas de imagens documentais sobre a dor dos outros, tornamos nossas realidades intoleráveis em ficções sustentáveis, quase claras. Sontag menciona em seu texto como, em particular, em caso de experienciarmos situações extremas, geralmente comentamos que as mesmas “parecem um filme”. Ou seja, não enfrentamos, sentimos a realidade das imagens em feridas explícitas, mas as capturamos, as consumimos e trocamos a realidade pela imagem construída.

O aumento contínuo de horror expresso pelas imagens sobre a dor dos outros não somente nos choca, mas também nos insensibiliza para a realidade de fato vivida pelos seres presentes na fotografia. As imagens das feridas humanas se tornam parte da busca de conhecimento sobre os conflitos, de controle, familiarizando o espectador com a distância que tal experiência congelada e palpável retêm. Tais imagens buscam atrair atenção de um modo publicitário, ou seja, se comunicam diretamente ou implicitamente com fluxos de consumo. Imagens de guerra enquanto a “captura da realidade mundial” buscam dentre os limites fronteiriços de cada conflito manejar uma experiência universal do sofrimento sob os níveis de reprodução da informação humana. Logo, por essa “captura” de imagens, as imagens fotográficas em si carregam um desejo humano de conhecer esse limiar da existência: corpo e dor, vida e morte. Diante da dor dos outros, tentamos capturar nas imagens os limites de nossa morte e então esquecê-los.

*Lara Pontes Juvêncio Pena, bolsista FUNCAP.

2 comentários:

  1. Lara, o seu texto me fez pensar em como as reflexões de Sontag estão atuais para pensar a nossa situação. Temos visto tantas imagens das perdas familiares nesse contexto de pandemia. Diante da impossibilidade de viver os rituais de dor e luto, as fotos dos "santinhos" são disponibilizadas online, o facebook e o instagram estão sendo o local de manifestação da dor e da perda, a dor está diante de nossos olhos e cada dia, assustadoramente, próxima.
    "qual o sentido da dor, das feridas que os outros “capturados” pelas imagens carregam?"
    Como estamos olhando e vivendo a nossa dor?
    Nosso olhar está sensível as dores dos outros?

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