segunda-feira, 3 de abril de 2023

Resenha: Niketche: Uma história de Poligamia

Paulina Chiziane é uma contadora de estórias, como ela mesma se define, e foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, "Balada de Amor ao Vento" em 1990. Ao longo dos anos, a autora publicou mais nove romances, sendo reconhecida pelo Prémio José Craveirinha em 2003 pela obra “Niketche: Uma História de Poligamia (2002)”. Em 2021 obteve um marco inédito na história ao tornar-se a primeira mulher africana a ganhar o Prémio Camões e integrar oficialmente o patrimônio literário lusófono, sendo reconhecida internacionalmente. No mesmo ano é divulgado um documentário sobre sua vida e obra, chamado “Paulina Chiziane: do mar que nos separa a ponte que nos une”, celebrando sua história e gravado durante uma visita ao Brasil, o curta procura fortalecer as conexões entre o Brasil e Moçambique. As suas obras, assim como a sua biografia, são atravessadas pelo contexto histórico pós-independência de Moçambique, principalmente ao abordar criticamente temas recorrentes, como, por exemplo, o lugar da mulher na sociedade moçambicana, as tradições culturais, a pluralidade cultural e étnica do país, a poligamia e monogamia, sempre refletindo criticamente sobre aspectos da sociedade na qual está inserida. No livro Niketche: Uma História de Poligamia (2002), a autora utiliza uma linguagem lírica na qual a narração é feita em primeira pessoa pela personagem principal, Rami, de modo a criar um mergulho na subjetividade da personagem, e a partir das suas emoções e sentimentos dialogar sobre a posição da mulher na sociedade moçambicana. O livro pode ser dividido em três partes, na qual acompanhamos a trajetória de Rami na construção de sua “mulheridade adulta”, uma vez que o título do livro é uma referência à uma dança tradicional parte do rito de passagem da infância à adultidade de mulheres, representando o momento de consagração de sua maturidade. Este processo não é possível de ser executado individualmente, e que a protagonista não vivenciou em razão da colonização e do afastamento da família das tradições africanas ao cederem à religiosidade cristã. Sendo assim, como o próprio texto afirma, Rami é uma criança no corpo de uma mulher. No início da narrativa ela ainda não sabe nada sobre a vida, sobre o amor e sobre si mesma. A primeira parte do romance é marcada pela inquietação de Rami diante da inadequação do seu casamento aos moldes cristãos, mesmo seguindo todos os preceitos, ser casada e ter filhos, ela é atormentada pela ausência da figura paterna e matrimonial em seu lar. Rami sente-se mergulhada em angústias causadas pela sobrecarga das funções do lar, uma vez que Tony (esposo) é ausente, resta a ela prover aos filhos e executar uma jornada dupla no ambiente doméstico. Logo no início da narrativa é uma explosão que capta a atenção da personagem, o que a relembra da guerra de independência já finalizada, mas cuja memória ainda é presente para ela. Mas essa explosão, na realidade, é um acidente sofrido pelo filho, despertando nela questionamentos sobre a função do pai e o porquê da ausência do homem diante de suas responsabilidades. Durante esse primeiro momento, Rami deixa-se envolver em uma autoculpabilização gerado por baixa autoestima, ela passa a autodeterminar-se de modo negativo a fim de justificar os problemas causados pelo esposo e sua ausência, acha-se feia, mal vestida e nada feminina ao se ver no espelho. Um processo relativamente comum para mulheres que vivem em sistemas patriarcais de se culpar pela irresponsabilidade daquele que deveria ser companheiro de vida e parceiro de funções. A segunda parte da narrativa faz parte de uma investigação de Rami em torno dos motivos reais para a ausência do Tony no lar, envolvida em várias inquietações ela decide procurar onde o marido estaria passando o tempo. Envolvida na busca por respostas, Rami descobre que o marido partilha da poligâmica, como a grande parte dos homens moçambicanos, constituindo famílias com outras cinco mulheres. No primeiro momento, há o deslocamento da culpa - relacionada à ausência do marido - de si para aquelas outras mulheres com quem ele se relaciona, gerando uma rivalidade feminina e agressões físicas. Novamente o homem adulto tem a culpa e responsabilidade absorvida por outras figuras femininas, até que essas mulheres reconhecem a dor que partilham, pois todas sofrem com a ausência desse marido/pai. O contato entre essas mulheres plurais, de diversas etnias, permite a Rami entrar em contato com outros modos de pensar e analisar a realidade na qual vive. Ela percebe que mesmo na tradição poligâmica há regras e funções a serem exercidas pela figura masculina, as quais não estão sendo assistidas devidamente. Por exemplo, um homem só poderia ter novas esposas e filhos se possuísse condições financeiras de prover para o novo núcleo familiar. Este não é o caso dessas mulheres, jogadas ao acaso pelo companheiro e aparecendo somente para engravidá-las. A partir dessas trocas culturais, Rami é capaz de reconhecer as vantagens que possui sendo a “primeira” mulher, ou a esposa oficial registrada em cartório, pois o documento lhe garante direitos que as outras esposas não possuem. As esposas então são capazes de conceber o real problema que tem diante de si, e o Tony como responsável pelas mazelas sofridas por elas, mas de nada adianta esperar dele uma solução. Rami, como primeira esposa e resguardada minimamente pela lei, sente-se responsável por ajudá-las a desenvolver melhores condições de vida. Chegamos então à terceira parte da narrativa, o processo no qual podemos dizer que Rami vivencia sua experiência de amadurecimento ao procurar estimular a autonomia desse grupo de mulheres. Nesse trecho há uma ressignificação do casamento poligâmico e uma transmutação da situação, mulheres antes rivais pela atenção masculina tornam-se amigas no enfrentamento das dificuldades impostas pelo patriarcado. O que antes era um problema torna-se o ponto de partida para uma união feminina, através da qual Rami consegue desenvolver sua autonomia e buscar concretizar seus desejos independente da presença ou ausência de Tony. Ao conhecer essas outras mulheres e a realidade mais degradante na qual vivem, Rami consegue transformar sua posição de esposa legítima em uma tomada do poder daquele homem que falha a todas elas. A protagonista, envolta no desejo de livrar suas novas amigas de tamanho sofrimento, coloca para si e para elas o objetivo de conquistar suas independências financeiras, o que as possibilita exercer o poder definitivo de decidir estar ou não estar naquele casamento poligâmico. A questão não é mais a presença ou a ausência de Tony na vida dessas mulheres, mas sim o que elas são capazes de fazer para conquistar sua autonomia e escolher com quem e que tipo de relação desejam ter com seus parceiros. Niketche é uma história sobre a potência transformadora que a união feminina pode trazer efetivamente para a vida de mulheres submetidas ao patriarcado, vivendo situações de vulnerabilidade econômica, física e social. A dor gerada pela situação problemática em que se encontram no primeiro momento é o ponto de partida para o reconhecimento de que elas sofrem do mesmo mal, causado pelo patriarcalismo. Mas, diante do problema, elas encontram na união de mulheres conhecimentos, técnicas e possibilidades de imaginar uma outra realidade e reconstruí-la, e assim poder realizar sonhos muitas vezes esquecidos. Uma história sobre uma trajetória de maturidade feminina a fim de construir uma irmandade em busca de conquistar uma autonomia capaz de criar uma realidade mais prazerosa para todas as mulheres. História esta que também faz alusão à luta pela libertação de Moçambique e o fim da Guerra Civil em 1992, na qual havia a busca pela emancipação do Estado Nacional e a conquista da autonomia do povo. Nesta tessitura narrativa Chiziane movimenta vários elementos culturais a fim de discutir pela irmandade gerada pela prática poligâmica, qual o verdadeiro lugar da mulher na sociedade moçambicana, e mais ainda, se existe um lugar onde essas mulheres devam estar. Desta forma Chiziane ressignifica em sua escrevivência, isto é, se tomarmos a perspectiva de Conceição Evaristo (2009), a própria ideia de uma literatura feita apenas por meio de palavras, como assim questiona Foucault (1964), mas sobretudo, como um complexo e infinito diálogo com aquilo que pode e deve ser dito, trazendo para o centro do debate as vivências de diferentes personagens silenciadas em seus mais íntimos desejos pela perpetuação de um código patriarcal que nega por meio da linguagem a existência das suas sexualidades e desejos.

*Resenha escrita por Neila Leyelle da Costa Anchieta e Lucas Pinheiro Tenório Farias, bolsistas de iniciação científica do projeto "Rastros da Memória em narrativas literárias: Grafando recordações na literatura africana e brasileira", orientado pela professora Cristina Maria da Silva, e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Rastros Urbanos - UFC.

REFERÊNCIAS 
CHIZIANE, Paulina. Niketche: Uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado. Escrevivência a escrita de nós: Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2009, p. 27-46." 
FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: Machado, Roberto. Foucault a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 
SANTOS, Nuno Ferreira. Paulina Chiziane.2022. 1 fotografia. Disponível em: https://www.publico.pt/2022/05/27/culturaipsilon/entrevista/paulina-chiziane-momento-guerra-preto-branco-onde-fica-mulato-2007516.  

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