terça-feira, 20 de junho de 2023

Resenha: Hibisco Roxo

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana reconhecida como uma das mais importantes autoras africanas da contemporaneidade. Adichie (2019) revela marcas da dominação ocidental ainda no fervilhar da imaginação de uma jovem criança quando aos 7 anos consumia e escrevia sob a base homogênea das leituras de livros infantis britânicos, fazendo-a criar personagens de olhos azuis que comiam maçãs, bebiam cerveja de gengibre, andavam sobre a neve que caía do céu e conversavam monotonias. Todavia, a sua realidade de mulher nigeriana era diferente daquilo que outrora escrevia, onde morava não havia neve, tão pouco se comia maçãs - eram mangas- e nunca se falava sobre o tempo, não havia necessidade. Mesmo assim, anos mais tarde ao fazer intercâmbio para estudar nos Estados Unidos causava espanto em sua nova colega de quarto por ao invés da “música tribal” ouvir Mariah Carey e saber utilizar um fogão. No seu romance Hibisco Roxo (2011), logo no início da trama podemos entender aquilo que a autora propunha no sentido de trazer uma outra perspectiva à cegueira branca que impede com que enxerguemos os outros (SARAMAGO, 2017) dentro de uma coletividade no mundo ocidental. A personagem principal, Kambili, uma jovem adolescente, começa a narrar a sua história a partir de quando os hibiscos do seu jardim eram de um vermelho chocante, ou melhor, quando eles enquanto coisas vivas (INGOLD, 2012) ainda não tinham percebido que a sua própria realidade começava a trincar, e se desmantelar tal qual “inúmeras bailarinas de cerâmica" (ADICHIE, 2011), remetendo em sua simplicidade factual o momento em que o riquíssimo patriarca e fervoroso religioso, Eugene, reconhecido por muitos como “omeloral”, atirara um missal no filho, o pequeno Jaja; bem como o desdobrar das transformaçoẽs sociais causadas por sucessivos golpes militares na Nigéria coadunada sobretudo, com a contínua sangria do colonialismo na língua e nos costumes. Tendo em vista o seu poder em fazer estremecer as estruturas da dominação, a arma questionadora da palavra se transformava em um perigo constante tanto para Kambili que buscava as respostas para suas inquietudes interrogativas lendo os olhos dos outros, através do que ela chamara de “língua dos olhos” (ADICHIE, 2011, p. 55) principalmente, os da sua umunna (família); quanto para os homens e mulheres que habitavam a Nigéria, um deles, Ade Coker, amigo pessoal da família Achike “um homem pequeno, rechonchudo e risonho” (ADICHIE, 2011) do editorial de Standart, fora preso, torturado e tempos depois morto com uma bomba em um pacote na frente de toda família pela ditadura militar após uma matéria publicada. “Mas o que nós, nigerianos, precisávamos não era de soldados para nos comandar; precisávamos de uma democracia renovada” (ADICHIE, 2011, p. 15), dizia fervorosamente Eugene, ou melhor, a própria Chimamanda em sua escrevivência. Ainda nessa perspectiva escrevivente, no decorrer do enredo a autora faz menção simbólica a um assasinato brutal ocorrido em 1995 pela então ditadura militar da Nigéria, liderada pelo tenente-general Sani Abacha: o enforcamento de Ken Saro-Wiwa, jornalista, produtor e ativista ambiental. No entanto, para narrar de maneira ainda mais cruel as repressões violentas a posição militar, o personagem de Adichie (2011), fora morto ainda de modo mais colérico, Nwankiti Ogechi, teve seu corpo dilacerado por balas num bosque em Minna, “Depois, jogaram ácido em seu corpo para fazer sua pele derreter, para matá-lo mesmo depois de eles já estar morto” (ADICHIE, 2011, p. 101), tentando apagar os rastros daquilo que um dia fora vivo. Todavia, segundo Didi-Huberman (2017), as coisas estão sempre sendo regurgitadas, escavadas, descascadas, descobertas de forma que a destruição dos seres, não significa que eles foram para outro lugar, mas sim, que ainda continuam (sobre)vivendo através das marcas deixadas no tempo e no lugar onde foram tecidas. Desse modo, com a ausência da palavra verbalizada, Kambili fazia dos olhos palavras pensadas, que, assim como os cânticos cristãos das missas do padre Benedict, ressoavam e escorriam por vezes negativamente em seu corpo físico, Um desses eventos se deu quando a sua mama (mãe) sofrera novamente outro aborto após um episódio de agressão física de Eugene. A jovem garota descrevera melancolicamente a cena: “Mama estava jogada em seu ombro como os sacos de juta cheio de arroz que os empregados da fábrica dele compravam aos montes na fronteira com o Benin” (ADICHIE, 2011, p. 18). Kambili nunca se recuperou por completo da fatídica cena, e por vezes via o vermelho sangue fresco escorrendo do poço visceral da mama misturar-se como a alma de seu irmão morto. Contudo, Eugene sempre culpava a esposa Beatrice pela morte do filho, a quem obrigava a rezar por perdão divino. Aliás, a prática da penitência no lar da família Achike, pressupunha muitas vezes água fervente derramada sobre os pés até que a pele se desgrude quase que completamente. Contudo, de outra ponta extrema da realidade de suas vidas, Kambili e Jaja, percebem durante a viagem a Nsukka que o mundo não é somente um lugar de sussurros, silêncios e continências religiosas, mas sobretudo, um lugar onde as pessoas habitam com as suas mais íntimas práticas, seus costumes e diferenças. Foi dentro da pequena casa de tia Ifeoma, juntos aos primos, Chima, Amaka e Obiora, onde os jovens irmãos começam a descobrir a si mesmos, seja atráves do contato com as flores do barulhento e misterioso jardim, a escassez de comida e água, os protestos dos estudantes na Universidade da Nigéria, a devoção aos deuses ancestrais do PapaNnukwu (avô), ou a paixão pulsante pelo padre Amadi. Cada um desses aconteceres levaram Kambili e Jaja a uma nova dimensão do próprio ser, trazendo a tona o que antes engoliam em segredo: a opressão no próprio lar. A história trazida por Chimamanda é um reflexo íntimo e sublime da realidade das práticas culturais da Nigéria, e principalmente de como a cultura ocidental apoiada nas suas convenções patriarcais tenta cercear a liberdade religiosa, linguística e das próprias instituições nigerianas, instaurando um cenário epistêmica. Contudo, os hibiscos roxos enquanto coisas (INGOLD, 2012) são vivos e passam a serem testemunhas dessa ação truculenta e dilacerante do poder hegemônico, ocidental. A chave para o entendimento da complexidade dessa leitura está na capacidade com que enxergamos os Hibiscos.

*Resenha escrita por Neila Leyelle da Costa Anchieta e Lucas Pinheiro Tenório Farias, bolsistas de iniciação científica do projeto "Rastros da Memória em narrativas literárias: Grafando recordações na literatura africana e brasileira", orientado pela professora Cristina Maria da Silva, e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Rastros Urbanos - UFC.

REFERÊNCIAS 
ADICHIE, Chimamanda Ngozi.O perigo de uma história única.São Paulo: Companhia das Letras, 2019.  
ADICHIE, Chimamanda Ngozi.Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.  
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017. 
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, 18, 37, p. 25- 44, jun. 2012.  
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 
1 - Hibisco Roxo: Fonte - Google imagens. 
2- Capa: Fonte - ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.7  
3- Chimamanda: Fonte - Google Imagens  

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