segunda-feira, 11 de julho de 2016

Comportamento. Em nome do bem

http://www.opovo.com.br/app/opovo/dom/2016/07/02/noticiasjornaldom,3631061/comportamento-em-nome-do-bem.shtml

Reportagem.dom 03/07/2016
 
(Ana Mary C. Cavalcante)  


Especial
 
Ir até o ódio, atravessando os próprios conflitos dentro de si, é um caminho de uma vida. Desbravá-lo também abre passagens para chegarmos ao amor, à solidariedade. O ódio e seu oposto são rotas humanas. “Convivemos com o ódio na mesma proporção que da mansidão… Nossa natureza é agressiva. Temos o duplo o tempo todo: somos muito próximos do animal e precisamos conviver com outras pessoas, que é a dimensão social”, retrata o psicólogo José Olinda Braga, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
 
A educação é a carta de navegação entre nossas pequenas ilhas de sentimentos e a imensidão do mundo. Desde sempre, precisamos “aprender a ver no outro, no diferente, não uma ameaça, mas alguém que vá compor uma diversidade onde possamos sobreviver”, une José Olinda. “O ser humano é complexo e, por consequência, a sociedade também é”, concorda a socióloga e antropóloga Cristina Maria da Silva, professora da UFC. “Há uma falta de conhecimento tão profunda de quem é o outro”, completa.
 
O desconhecimento leva ao medo, base movediça do ódio, relacionam os especialistas. Não saber do outro é não respeitá-lo: é atear fogo em um morador de rua ou indígena, é postar um estupro coletivo nas redes sociais, é homenagear a tortura em um discurso público. A sociedade brasileira legitima os absurdos. Família, escola, igreja, Estado despontam como locais de geração de valores e de esclarecimento, concordam os estudiosos.
 
Tem que se incentivar “práticas que mostrem respeito e tolerância”, propõe o psicólogo João Ilo Coelho Barbosa, professor da UFC. Em par, ele soma, é necessário “ter um mecanismo (legal) de proibir manifestações de intolerância: não posso chegar no Facebook e fazer uma ofensa a uma pessoa negra ou homossexual”. E ainda é imperativa “uma transformação econômica e política. Não é possível se manter uma sociedade tão desigual. Não tem como não encher as pessoas, nessas desigualdades, de ódio e agressão”, pontua José Olinda Braga.

A prática do afeto
“A vida é serviço ao outro”, elucida o psiquiatra e padre Rino Bonvini, do Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim. É uma passagem do divino para o humano, sinaliza: “Dar comida a quem não tem, visitar os prisioneiros, ser amoroso com os idosos, os marginalizados”.
 
Mas andamos em círculos no amor a si mesmo, vivendo o que o padre classifica como “esquizofrenia religiosa” da sociedade judaico-cristã: “O contrário do amor é a indiferença, quando a gente não se importa. É o paradoxo das pessoas que amam a Deus e deixam os pobres em situação de injustiça. Ou todas essas expressões de ódio, como a homofobia, embasadas em motivos ‘religiosos’ que deveriam ser orientados pela opção para o amor ao outro”.
 
Em nome do bem, importa a prática do afeto, a conjugação da paz e da esperança. “O mundo só tem solução se compartilharmos não só o material, mas o afeto, o amor. O amor é o alimento das almas”, manifesta o historiador e professor Luciano Klein Filho, dialogando com o espiritismo. Para ele, a educação que muda, efetivamente, os rumos da humanidade procede do amor: “Se você não tiver afeto em tudo o que faz, vai no automático… E não se deve perder a capacidade de sonhar, e acreditar, e ter esperança em um mundo melhor”.
 
É possível pular o abismo. “Para o ser humano alcançar o objetivo pelo qual foi criado, tem que aprender a amar incondicionalmente, assim como Deus nos ama”, liga padre Rino. A “pedagogia do amor” ou a evolução “na capacidade de amar”, diz o psiquiatra, nos desafia ao salto. “Não é fixa, fechada. Está dentro de um processo evolutivo. E, para nos orientar no processo do amor, temos que decidir do que vamos nos alimentar: de sentimentos de paz, justiça, fraternidade, ou do sentimento de dominar o outro, de criar privilégios para nós? É uma decisão”, espelha. (Ana Mary C. Cavalcante)

De onde vem o ódio, vem também a compaixão, a solidariedade, o amor. E todo sentimento bom que recompõe a humanidade  

Na outra margem do abismo
O ódio atenta contra a existência. Há motivações racionais e gatilhos irracionais. Procurando respostas para o massacre de homossexuais em Orlando, o psicólogo José Olinda Braga monta um quebra-cabeça do ódio demonstrado pelo atirador Omar Mateen. Há peças que contém “uma história de vida” e, encaixadas, talvez revelem o que Mateen negasse em si: “É o conflito interior. Essa coisa terrível que não aceito em mim são os outros. Já que não posso matar isso em mim, mato no outro”. Mata-se o que é livre.
 
O pensamento que advoga o direito de tirar a vida de alguém cruza o mundo, sobe morros, avança por periferias. Em outubro de 2015, atingiu 11 pessoas aqui, tão perto e tão longe ao mesmo tempo. A chacina da Grande Messejana diz que não (re)conhecemos o próximo e o apartamos, atenta a socióloga Cristina Maria da Silva. E diz sobre uma disputa, primitiva e arraigada na cultura brasileira, de poder, traduz José Olinda: “Existe forma mais clara de mostrar o poder do que matar os outros?”.
 
“A vida é um dom que se recebe e se partilha. O ser humano está se comportando como se fosse Deus”, diferencia o psiquiatra e padre Rino Bonvini. Mas quem se importa com o assassinato de homossexuais, pobres, índios, negros? Ou com o estupro de mulheres? Os comentários virtuais (ou não) que se seguem a fatos desse tipo expõem nossas sombras. Os discursos que justificaram o impeachment de Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, lembra Cristina da Silva, dizem sobre a sociedade brasileira. Na outra margem do abismo, resta aquela mãe, que banhou o rosto com o sangue do filho morto por uma bala no morro do Querosene (Rio de Janeiro, 10 de junho último), a olhar para nós.  

AMAR O PRÓXIMO
 

Fé e respeito na mesma medida
O fuzil automático que Omar Mateen, um norte-americano com ascendência afegã, disparou contra mais de 300 pessoas na boate Pulse, em Orlando, no último dia 12, apontou também para o islamismo. A imprensa local divulgou ligações de Mateen com o grupo extremista muçulmano Estado Islâmico; e o FBI o tinha interrogado em 2013 e 2014, investigando tal relação – mas não encontrou provas cabais. É difícil precisar a razão da tragédia e “toda generalização é perigosa”, pondera o historiador Luciano Klein Filho.
É necessário “cuidado para não gerar distorções e preconceitos”, responde frente a questão: qual a influência das religiões na produção do ódio? Para o espírita, todas as religiões levam a um mesmo fim: a fraternidade. O desvio “é a distorção em nome da fé”, separa. Nesse sentido, ele lembra que, historicamente, conflitos se estabeleceram desde as Cruzadas (século XI). Cristãos já mataram cristãos. Persiste ainda a distorção pelo desconhecimento, sublinha Klein, referindo-se, por exemplo, ao preconceito contra as religiões africanas.
 
O assunto é extenso e difuso em crenças, mas há um ponto em comum: a ideia de que a religião - “religare, em latim”, mostra o psiquiatra e padre Rino Bonvini – aproxima o homem de Deus. Ou da luz, do bem, do amor maior, do transcendental... Não importa a nomenclatura, mas o entendimento. “Na medida em que a religião é vivenciada como experiência de serviço e amorosidade para o próximo, e todas as religiões têm esse componente, todas as religiões são como ponte”, congrega Bonvini.
 
O respeito também é uma ponte entre os abismos do ódio. E é do mesmo material que a fé. “A grande questão é o respeito ao outro… Quando se fala algo relacionado à fé, as pessoas se armam como se a gente fosse falar de algo abstrato. É uma questão de lógica: amar ao próximo como a si mesmo”, defende Luciano Klein Filho, com base na doutrina espírita. “Cada religião tem suas regras, tradições. Depende do que faço com minha religião. Se minha religião é para servir, para que todos tenham vida em abundância, estou me aproximando da luz. Se eu for usar a religião para o poder, estou indo na direção de uma esquizofrenia que mata o outro em nome de Deus”, evidencia padre Rino.   

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