segunda-feira, 11 de julho de 2016

Comportamento. O mal pela raiz

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Reportagem.dom 03/07/2016 
 
Ana Mary C. Cavalcante anamary@opovo.com.br

Especial
 

Distantes na geografia, o massacre na boate Pulse (Orlando), a chacina da Grande Messejana (Fortaleza), a guerra civil na Síria (Oriente Médio) e todas as barbáries espalhadas pelo mundo têm uma ligação humana: o ódio. Sentimento guardado, por indivíduos ou culturas, que se torna visível na ofensa, na segregação, no assassinato.
Em um retrato espírita e filosófico, todos temos “um pouco de sombra e luz, ódio e amor”, identifica o historiador e professor Luciano Klein Filho. “Isso é inerente à criatura humana”, ele completa, “basta que atentemos para nossas atitudes cotidianas” nos relacionamentos particulares ou sociais.
 
Em sua origem humana, o ódio nasce de “uma raiva intensa. E a raiva é uma emoção básica, como a alegria e a tristeza”, relaciona o psicólogo João Ilo Coelho Barbosa, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e analista do comportamento.
 
No mapa dos sentimentos, o ódio está na região do cérebro onde também habita a consciência, situa o psiquiatra e padre Rino Bonvini, presidente do Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim. Divide espaço com emoções complexas, a exemplo do amor, limita-se com o orgulho e o egoísmo. “O amor e o ódio nascem, na nossa cultura, nessa dicotomia entre o poder e o serviço”, traça padre Rino.
 
No território das relações, o ódio está nos isolamentos, inerentes à formação das sociedades. “Existe uma tendência psíquica humana”, diz o psicólogo e professor da UFC José Olinda Braga, de se agrupar no “‘nós’, numa espécie de ‘complexo de rebanho’”. Todos os que não se aglutinam nesses limites são negados como “o outro que me é estranho, que não se identifica comigo e com minha tribo. E passa a ser objeto de ódio”, conclui o psicólogo.

Fronteiras e extremos
O ódio está em toda parte, dentro e fora de nós: nas fronteiras das palavras e dos lugares, no extremo das ações individuais e das desigualdades de uma civilização. “O sistema capitalista é, antes de qualquer coisa, civilizador. E esse sistema é, extremamente, excludente”, demarca a socióloga e antropóloga Cristina Maria da Silva, também professora da UFC.
 
“Uma maioria está distante das condições básicas de vida”, à beira do ódio, concorda José Olinda. “O ódio sempre esteve entre nós. Não ficou perdido na casa grande e senzala: estava debaixo do tapete da casa… Esse ódio ao pobre, ao negro, ao índio, aos homossexuais, às mulheres sempre esteve presente entre nós”, atualiza Cristina. “O orgulho e o egoísmo são as duas grandes chagas abertas no íntimo da alma humana”, dialoga Luciano Klein Filho. A intolerância, ele acrescenta, é filha do orgulho que nos faz considerar melhor do que os outros. “Existem culturas que incentivam o ódio a minorias e, na história pessoal do indivíduo, ele pode ser mais suscetível a isso”, considera João Ilo.

Sentimentos e semelhanças
Existe uma explicação para o ódio; tão ampla quanto o que é humano. O que não existe é uma justificativa para matar, segregar, ofender. Somos todos semelhantes, sem exceção – nas dores, medos, alegrias, afetos. Tanto que casos como o massacre de Orlando ou a chacina da Grande Messejana, exemplifica Luciano Klein Filho, “nos comovem porque somos parte da mesma humanidade ou família humana”.
 
Ainda que complexo, o ódio é uma escolha – da mesma forma que o amor. “Sentir o ódio é humano. Mas o fato de escolher o ódio para dominar e fazer aquilo que achamos melhor é uma opção. Existe um livre arbítrio”, contrapõe Rino Bonvini. “No nosso normal (excetuando-se as situações de patologia), a gente tem essa gangorra entre o ódio e a mansidão”, ratifica José Olinda. Distinguir o ódio, em nós, não é fácil: “Você tem que se auto-observar”, indica João Ilo. Encarar o espelho do orgulho, do egoísmo. Mas ver o ódio é também ver a possibilidade do seu contrário. 

Um mundo entre mortos e feridos
49 pessoas, entre 19 e 50 anos, foram mortas pelo atirador Omar Mateen, 29 anos. O massacre aconteceu no último dia 12, na boate gay Pulse (Orlando/Flórida – EUA).

11 pessoas, entre 16 e 37 anos, foram assassinadas nas comunidades do Curió e Alagadiço Novo, na Grande Messejana, em Fortaleza. A chacina se deu na madrugada do dia 12 de novembro de 2015. Dois oficiais e 43 praças da Polícia Militar foram denunciados pela execução.

Mais de 300 índios da etnia Guarani-Kaiowá já foram mortos em conflitos latifundiários atuais no Mato Grosso do Sul. A denúncia foi feita pela líder indígena Guarani-Kaiowá Valdelice Veron, em outubro de 2015, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara (Brasília).

470 mil sírios morreram em cinco anos de guerra civil
no país, de acordo com o
Centro Sírio para Pesquisa Política (dados de fevereiro de 2016).

65,3 milhões de pessoas se refugiaram de guerras ou conflitos no mundo, em 2015, segundo a Agência da ONU para Refugiados. A informação foi divulgada no último dia 20 e é considerada um número recorde. Mais da metade de refugiados são de três países: Síria (4,9 milhões), Afeganistão (2,7 milhões) e Somália (1,1 milhão). 

Saiba mais
A professora
Cristina Maria da Silva coordena o grupo Rastros Urbanos, de estudos sobre experiências e narrativas da Cidade. As pesquisas reúnem relatos que espantam. Em uma delas, uma criança de dez anos, moradora de um condomínio em área nobre da Capital, brigando com o porteiro do prédio teria dito: “Sou eu que paga seu salário, você tem que fazer o que eu quero!”.

Narrativas de humilhação também são trazidas por estudantes africanos, que contam sobre as piadas preconceituosas na universidade e os passeios vigiados, por seguranças e olhares, nos shoppings de Fortaleza.
A socióloga cita ainda a ausência de negros, índios e mulheres à frente de ministérios do governo Temer, para demonstrar como “a sociedade vai muito mal. Porque tem um modelo fechado: branco, heterossexual, religioso”.

O lugar social desses cidadãos está mal resolvido no imaginário cultural brasileiro, fala a pesquisadora. As pessoas são caracterizadas por cor, sexo, condição social e não são reconhecidas como seres humanos além do que se vê. Criam-se isolamentos. “A questão central é: qual o local do outro em nossa sociedade?”

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