Maputo,
22 de setembro, 2019
“A
Cidade
um pássaro
mastiga a felicidade da pedra.
...
Lâmina
divide nela os homens
encostada ao oceano vaticina
a amnésia deliberante dos tempos.”
Japone Arijuane
(Dentro da Pedra ou a Metamorfose do silêncio, 2014,
p.39).
Quando eu
era criança viajar me dava enjoos...bastava a viagem começar de carro, ônibus
ou barco...e tudo me embriagava. Com o tempo descobri que o que me enjoava eram
pequenas distâncias. A alma queria ir longe, mas ainda não sabia...
Em Maputo,
do outro lado da margem, atravesso a ponte do Catembe de barco. Quanto de mim
estava ali? eu era também a criança que
atravessava a Barra do Ceará para ir ao outro lado para o banho de mar
tranquilo das tardes de domingo? Entre Maputo e Fortaleza, a cidade da minha
infância emerge. As distâncias por instantes tão curtas que nem parecem banhadas
pelas águas de dois oceanos.
Do outro
lado o cheiro de peixe, as pessoas quase que timidamente tocando as águas,
pediam permissão para usufruir da cidade que é delas. O pé afunda na areia,
deveria ter vindo de havaianas ou mesmo estar descalça. Poderia mesmo não
sabendo onde meus pés tocam essa terra? Caminhando sozinha controlava meus
passos, meu tempo? em companhia de outras mãos e olhares caminhei quase com
seus pés, pois não sabia a rota. O mapa se faz a cada passo, a paisagem se
desenha em meus olhos. Do outro lado a cidade se monta como paisagem de prédios,
antes diluídos na turva imagem das manhãs ou ofuscadas pelo céu laranja do entardecer.
O Índico é um grande rio que nos atravessa, cinza, arredio, fragmentos de
cercas.
Fechando os
olhos a trilha sonora é brasileira não me permitindo saber se voltei para casa
sem passaportes ou alfândegas. O gosto da comida é familiar, tudo parece
compartilhar o mesmo chão e a mesma faina cotidiana. Gosto, temperos das mesmas
terras, como se os oceanos não existissem. Só a Heinecker lembra a aldeia
global onde todos estamos, sem certezas, garantias, nem mesmo se podemos voltar
à outra margem. O tempo voa e já não há mais barcos, só travessias. Pensaram na
ponte, mas não que as pessoas que atravessam precisam voltar...Entramos no autocarro
que mais parecia as linhas de transporte da Fortaleza da minha juventude, Grande
Circular ou Paranjana II nos meus tempos de estudante...Ah Fortaleza! Não saio
de casa ou a casa está de tão modo em mim que já a vejo em todos os lugares?
Entro e deslizo entre os corpos, andar em transporte público é uma arte que
Fortaleza me ensinou...gritos, línguas que não entendo, sei de algum modo o que
dizem. Obcenas? Obceno os habitantes de um lugar viverem como se esse lugar não
fosse deles! Por que as línguas africanas nos chegaram só aos pedaços no
Atlântico? Gritos, quase uivos de quem diz existir para a cidade de pedra.
Atravessada pela ponte, feita para ser paisagem, a noite preenche a cidade de corpos:
risos, toques, goles na bebida quente, a criança encantada com a ponte inunda
meus olhos com risos de quem ainda não sabe o que há do outro lado e nem o que
ficou para trás. O dia de lazer termina, mas ainda dá tempo de pular pela
janela antes que o fiscal veja e de gritar toda a vida que não cabe dentro!
Um jovem
pai coloca o filho do colo para me dar um lugar para sentar...olho para todos
os lados e gostaria de não ser tão branca. Ao meu lado o rapaz me pergunta se
sou portuguesa, francesa ou russa? Não sabendo identificar, ele indaga: Há
quanto tempo em Moçambique? Respondo que um mês. Ele com espanto afirma: tão
pouco tempo e já falas tão bem o português. Os ruídos são tantos que quando
chega no ponto de descida a alma ainda segue viagem... caminhamos, já é noite e
domingo, passos acompanhados, mãos que tocam suavemente as minhas, sei que da
África já não posso voltar.
Olho, sou olhada
Outras mãos,
Outros olhos,
Outras Terras,
A viagem é para
dentro e
Sem volta.
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